Eu sei, eu deveria falar da vida, do futuro e de tudo o mais. Mas muito se fala que não tocamos no assunto. E que discutir o morrer, destino final de todo ser humano, deveria ser tão comum quanto falar da vida, a nossa viagem temporária. Pois cá estou, tocando na ferida e falando sobre ela: a temida, a desconhecida, a enigmática. Ela, a morte. ​

​O texto mais desconcertante que li há algum tempo foi publicado pela Folha de São Paulo. O médico britânico Richard Smith afirmava que “morrer de câncer é bom”, porque nos dá oportunidade de realizar tudo antes de partir: tempo para as despedidas, realização dos últimos desejos, apreciação de paisagens e comidas.

Enfim, o autor sugere que sair de cena com consciência é muito melhor do que partir de supetão, como acontece em mortes trágicas e rápidas. ​

​Primeiro, fiquei com ódio do autor, que chega a sugerir que se invista menos nas pesquisas para a cura do câncer. Foi como se tivesse tomado um soco no estômago. Depois de tantas mortes recentes que observei nos últimos anos, algumas até perto demais, fiquei muito distante dessa visão romântica de que os dias e meses finais dão chance da pessoa que tem câncer aproveitar a vida lindamente.

Sim, há roteiros a conhecer, mas falta-lhe saúde para percorrer o trajeto. Sim, há muito para experimentar – cheiros, sabores, toques – tão únicos dessa nossa viagem temporária, mas falta ao corpo doente o ânimo, o gosto para percorrer novas aventuras. Sim, há muito para se viver, mas a iminência da finitude torna o ser um humano muito mais frágil, um pouco caramujo, totalmente confortável dentro do próprio casco. São apenas alguns dos motivos que tenho para não me deixar levar por essa associação do câncer com algo fantasioso e cor-de-rosa.​

​Ao fim do meu golpe inicial, pude pensar melhor sobre a ideia sugerida por Smith. Estava relendo um livro que tinha tudo a ver com o tema, As Terças com Morrie, de Mitch Albom, que depois virou um filme. Inicialmente, tive contato com a obra em meados do ano 2000 e me agradou muito. Mas, na correria que vivia, as lições maiores passaram despercebidas. Por uma dessas ironias do destino, dei de cara com suas páginas um dia desses, enquanto arrumava uma prateleira, e quis ler novamente. Justamente enquanto tinha o pensamento estarrecedor do britânico em mente.​

​Na obra de Albom, o jornalista descreve os últimos encontros com o professor de sociologia Morrie Schwartz, que sofria de uma doença degenerativa e fatal. Ao rever seu Mentor, como o chamava carinhosamente desde a juventude, eles decidem fazer algo útil em vez de lamentar o destino de Morrie. Sempre às terças, começam a elaborar lições de vida para os que ficam para trás – e talvez estejam perdendo tempo demais com as picuinhas do cotidiano e se esquecendo de aproveitar as coisas simples e tão apreciadas por quem está perto do fim. ​

​Os ensinamentos são variados: de família a dinheiro, de relacionamentos a natureza, de arrependimentos a despedidas. Tudo com o sabor de quem está com os dias contados para terminar sua jornada. Sem rancor nem medo. Sem depressão nem desespero. Com muita lucidez e sabedoria. Claro que ajudou a idade – Morrie tinha 78 anos quando faleceu – e tinha a certeza de que vivera bem. O professor sabia que deixaria uma bela última lição de vida para seus alunos. ​

Morrie não precisou do câncer para se despedir da vida. Outra doença o atingiu. Mas o que ambos têm em comum é a crença de que a consciência de um fim iminente pode nos dar a chance de aproveitar muito bem os derradeiros minutos. Smith não precisava romantizar o câncer como a melhor morte. Poderia apenas afirmar que algumas doenças nos permitem despedidas e reflexões antes de dizer adeus. ​

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