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Se fala, diz, mas se cala, também

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Se fala, diz, mas se cala, também
Foto: Arnd Wiegmann/Reuters/Direitos reservados

Naquele tempo recente, não apenas nada se dizia da roubalheira e da corrupção, como havia no ar uma silenciosa busca de consenso para que, em nome do obrigatório apoio ao melhor governante desde Tomé de Souza, estendido depois à sucessora, o imaginário muro de insensata e mafiosa proteção não sofresse nenhuma rachadura.

Este escritor e professor  percebia algumas mudanças ainda no ar. E eram assustadores, de novo, os indícios de como elas seriam feitas.

Assim, escrevia em O Globo (16 mar 2014), em artigo avulso, depois publicado também neste espaço: “O Brasil dá sinais de que vai mudar. Um ciclo ameaça completar-se. Tornando-nos ou não hexacampeões mundiais de futebol, reelegendo ou não a presidente Dilma, mudaremos!”.

E prosseguia: “Raramente mudamos sem traições. Joaquim Silvério dos Reis traiu Tiradentes, mártir de nossa Independência política, enforcado e esquartejado por ordem da rainha Maria I, avó de Dom Pedro I. Este, ao proclamar a Independência, traiu a memória da avó e também a Coroa portuguesa, à qual servia. Dom Pedro II, seu filho, foi traído pelo marechal Deodoro, que, apesar de monarquista, proclamou a República!”.

No batente de escritor e professor, sempre preferindo o trabalho de extensão em livros, artigos e colunas na mídia a enfadonhos relatórios enviados “à consideração superior” – nas duas últimas décadas,  eram em geral instâncias compostas por inferiores em quase tudo, mas que dedicaram a vida a ações que os instalaram ali -, quantas vezes o signatário foi testemunha ocular e auricular de sobrolhos irritados e muxoxos raivosos diante de constatações como a de Darcy Ribeiro, de que era um luxo termos um presidente como Fernando Henrique Cardoso.

Dizia o signatário no mesmo artigo: “Mas FH, tendo derrotado Lula em duas eleições presidenciais, tornou-se um verdadeiro homem sem qualidades para muitos de seus ex-colegas de esquerda”.

Havia também um ou outro lapsus linguae a considerar, às vezes disfarçado em tom de brincadeira, de que foi exemplo emblemático uma intervenção da então ministra Miriam Belchior que, em 20 de fevereiro de 2014, ao lado de Guido Mantega, também ministro da sucessora, que chamou Dilma Rousseff de “presidenta Lula”.

A ministra revelava a ponta do iceberg: a presidente era considerada apenas a moita atrás da qual o ex-presidente aguardava a hora de voltar, glorioso e desejado pelo povo, num trono de nuvens. O mandato da sucessora era um interstício, mera formalidade para atender ao rito democrático.

Mas, então, vieram os primeiros dissidentes, tratados como traidores, ainda que não tão abjetos como foram considerados depois os delatores, entre os quais o ministro Antonio Palocci Filho.

Tudo passara e o pior se fora? Não. Numa sequência voraz, substituía os assassinatos de reputação a queda de máscaras que revelavam a verdadeira face de figuras públicas referenciais, mas não apenas as delas. Caíam também as máscaras de intelectuais com os quais convivíamos, que se diziam democratas, mas incapazes de lidar sequer com uma simples discordância de seus pares, até mesmo em rápidos suspiros ou exalações em redes sociais.

Os discordantes recebiam o sinal de Caim na testa ou nas costas, mais nas costas do que na testa, dada a hegemonia do recurso dos atos praticados, e passavam a ser considerados personae non gratae, pessoas desagradáveis, num mundo onde se movem figuras que acusam os discordantes de ser o que elas são, fascistas; e acusá-las de fazer o que elas fazem.

Com efeito, o fascismo não proíbe apenas dizer ou fazer certas coisas, obriga a dizer e fazer outras.

Outro famoso personagem foi mais explícito: primeiro combateremos os inimigos declarados, a seguir seus simpatizantes e por último os indiferentes.

E não é que de repente tudo mudou de novo e rapidamente? Intelectuais que por treze anos tudo toleravam, mantendo um inexplicável silêncio obsequioso, não fosse também oportunista em muitos casos, agora procuram pelo em ovo todos os dias num governo que não chegou ainda a sessenta dias!

Fazem bem em criticar. Não é isso que se contesta. O estranho é que quem bateu no governo FHC durante oito anos, todos os dias, e poupou os governos seguintes, concedendo-lhes indulgências plenárias e até graças que, sejamos justos, não tinham sequer sido solicitadas, agora readquiriram subitamente a capacidade crítica.

Ainda assim, esses intelectuais são bem-vindos na volta ao aprisco onde sempre estiveram as pessoas de bem: combatendo o bom combate com independência intelectual, na base da conversa clara e do trato justo. (xx)

 

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