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São Miguel Arcanjo, Cáceres: a história de um cemitério à beira da morte

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São Miguel Arcanjo, Cáceres: a história de um cemitério à beira da morte
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Um clássico de 1982, Poltergeist tem sido bastante relembrado quando as discussões sobre a desativação do cemitério São Miguel Arcanjo, do bairro do Junco, em Cáceres (210 km de Cuiabá), ficam mais acaloradas. Alguns, bastante temerosos, acreditam que a história de desapropriar o terreno para dar lugar a um novo prédio não soa bem. É aí que entra o filme.

Na história, uma família se muda para um condomínio de novas casas e em pouco tempo vê o sonho americano desabar sobre suas cabeças, enquanto corpos de um cemitério violado surgem à tona.

Na vida real, a população cacerense está dividida. O Serviço Social/Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest-Senat) quer levar investimentos e serviços como acompanhamento médico às famílias dos trabalhadores do setor e atividades de formação e capacitação para moradores da cidade, e solicitou da Prefeitura, como contrapartida, um terreno para edificar a nova unidade em Mato Grosso.

Depois de realizadas audiências com aprovação da maioria, segundo a Prefeitura, o processo tramitou na Câmara Municipal e culminou com duas leis: uma que prevê a desativação do cemitério e outra que prevê a doação do terreno ao Sest-Senat.

Conflito

De um lado está a Prefeitura, que doou o terreno e familiares que apoiaram a remoção dos restos mortais dos entes falecidos e que inclusive, já liberaram as primeiras oito exumações realizadas. Do outro, estão defensores dos direitos humanos, historiadores, sociólogos e arqueólogos, além de outra parcela de familiares – em menor número – que refutam a desativação do cemitério por tratá-lo como um campo sagrado.

No cemitério, que deve ter aproximadamente 150 anos – e que há 30 está desativado –, é possível que estejam enterrados indígenas das etnias bororo, chiquitano e guató desterritorializados, escravos ou libertos pós-abolição e, ainda, prisioneiros políticos do Regime Militar recente. E isso preocupa os defensores do patrimônio histórico e cultural da cidade.

A dona de casa Maria Bezerra, por exemplo, culpa a Prefeitura pelo abandono e sugere que, ao invés de desapropriar, deveria reativá-lo. A filha dela, de dois anos, que foi vítima da meningite, foi sepultada ali em 1974.

[featured_paragraph]“A gente morava na Fazenda Progresso, não tínhamos condições. Contamos com a ajuda de outras pessoas para conseguir enterrá-la. Sou contra. Imagina, se uma pessoa morre hoje a família tem que desembolsar pelo menos uns R$ 5 mil, difícil ter esse dinheiro. Ele deveria ser reativado para atender a população carente”, afirma.[/featured_paragraph]

“O corpo dela está quase ao lado do pé de manga. Era uma ‘sepulturazinha’ bem pobre, não tive condições de melhorá-la, mas não é por isso que vou aceitar”.

A Prefeitura realizou duas audiências para reunir as famílias e expor a situação à população, mas a dona de casa disse que nem ficou sabendo, por falta de divulgação. Mas o assessor jurídico da Prefeitura de Cáceres, Átila Gattass, contrapõe.

“A primeira tentativa de desativar o Junco não evoluiu. Porém, com a intenção do Sest-Senat, surgiu essa nova possibilidade. Eles precisavam de um local próximo à rodovia e este seria o espaço mais indicado. Reiniciamos da estaca zero, ouvindo a sociedade, especialmente os moradores do bairro. Foi bastante divulgado, tanto é que lotamos a audiência. A Paróquia Nossa Senhora do Carmo, que tem um espaço muito grande, lotou. E os presentes votaram por unanimidade pela desafetação da área”, disse.

“Já estamos na primeira fase da exumação. Foram feitas oito delas e mais 12 estão agendadas”, complementa.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Segundo Átila, a Secretaria de Infraestrutura e Logística, a Vigilância Sanitária e a Ação Social têm atuado de maneira conjunta. “Esperamos encerrar essa primeira fase em setembro. Depois de realizadas as exumações em sua totalidade, vamos edificar a capela de ossos, no sistema de gavetas. Restos mortais não reclamados também serão transferidos para lá”, garante.

A assessoria de Comunicação do Sest-Senat também se posicionou, dizendo que a partir de um estudo identificou que Cáceres possui um expressivo percentual na demanda da utilização de transportes, no médio e longo prazos.

“A cidade está se instituindo como polo de transporte por conta da concentração rodoviária, aquaviária e também, por ser fronteira com o Mercosul”, informou.

A nova unidade [serão implantadas também nas cidades de Primavera, Lucas do Rio Verde e Sinop] terá uma área construída de dois mil metros quadrados. “Temos acompanhado todo estudo antropológico, em associação com a Prefeitura, e todos os procedimentos vêm sendo respeitados. O MP também foi acionado e audiências realizadas. O memorial mesmo vai ser construído por ali. A grande maioria é favorável”.

Tombamento

Ativistas pró-cemitério do Junco, que desejam que a história e a memória sejam preservadas, iniciaram uma verdadeira cruzada para impedir que o processo de desafetação seja revertido e que haja tombamento.

Sobre a idade do cemitério, opiniões também são divergentes. Estudo preliminar desenvolvido pelo Sest-Senat e Prefeitura aponta que os primeiros registros de sepultamento datam de 1926 e, o último, da década de 1980. E levando em consideração o período de atividade registrado no estudo, de atividade, as duas instituições avaliam que não haja escravos enterrados lá, como calculam os ativistas.

Em nota técnica, o Iphan se posiciona com cuidado ao receber ofício encaminhado pelo historiador e arqueólogo Luciano Silva. No documento, ele cita especulação imobiliária e proposta de esquecimento sobre os empobrecidos de Cáceres. “É uma barganha: entregue os restos mortais e nós te entregamos o futuro”.

De acordo com o conteúdo do alerta ao Iphan, “relatos de pesquisadores, artigos e teses nas áreas da arqueologia, antropologia e história recomendam cautela com relação ao Cemitério São Miguel Arcanjo (Junco), uma vez que o mesmo estaria relacionado a três povos [indígenas, negros quilombolas e perseguidos políticos]”.

Ainda segundo o documento, “a necrópole remete ao início da década de 1870, mais precisamente por volta de 1867 e situava-se na área rural da cidade de São Luiz de Cáceres, elevada a essa categoria em 1874”. Hoje, um bairro periférico.

Levando em consideração todas as questões apresentadas no caso da desafetação que inclui supressão da necrópole, exumações, construção de ossário e memorial, o Iphan resolveu levar em conta o altíssimo potencial arqueológico e histórico do município de Cáceres, dentre os com maior número de sítios arqueológicos/históricos de Mato Grosso e determinou vistoria técnica no local, em caráter de urgência, para melhor qualificar a análise do processo, bem como a posterior emissão de pareceres e termos de referência específicos.

O cemitério do Junco também integra um circuito patrimonial por conta de localizar-se próximo ao Carne, Praça Barão – construída em uma aldeia indígena e o sítio arqueológico Cavalhada, onde está a Igreja São Gonçalo.

O Ministério Público Federal também foi acionado e tem acompanhado o caso.

Povos tradicionais

O professor aposentado da Unemat, sociólogo e doutor em Ciências Sociais, Antônio Moura, é mais um dos que defendem a patrimonialização do cemitério, dada a concentração dos restos mortais de representantes de povos tradicionais.

“Muitos descendentes dos chiquitanos e quilombolas se concentravam naquela região. Os pobres moravam por lá e logicamente eram enterrados ali. Dá para notar as condições financeiras só pelos jazigos, ou ausência deles”, diz o historiador.

“Há outras áreas bem próximas ao cemitério que poderiam ser utilizadas para o empreendimento. Deveriam respeitar esse local, que é um campo sagrado. Parece muito com Poltergeist mesmo, pois há uma profanação do local”.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Regime Militar

Ao tratar da eventual descoberta de restos mortais de vítimas do Regime Militar, outro defensor pela manutenção do sítio arqueológico, Dimas Santana Neves, volta no tempo. De acordo com estudos que acompanhou quando estava ligado a uma comissão de Direitos Humanos da cidade, vinculada à Diocese São Luiz de Cáceres, na década de 1970, corpos eram encontrados sem identificação na cidade, especialmente nas regiões periféricas. Muitos deles foram enterrados no Junco.

[featured_paragraph]“Há fortes indícios de que alguns dos corpos enterrados lá foram sepultados como indigentes. Porém, não era esse o caso. À época, havia muitos ativistas contrários à Ditadura que viviam na cidade, como Tutelíneo, pai do cantor e compositor Guapo, bem como gente de fora”, relembra. “Além de gente que morreu de forma violenta, o cemitério abriga restos mortais de grupos sociais que hoje são considerados minorias. E já não sabemos mais se todos os ossos estão lá”.[/featured_paragraph]

É possível que as constantes limpezas com trator e as entradas de viaturas da polícia que visam a coibir a presença de usuários de drogas e criminosos possam ter desorganizado a disposição das ossadas. Há também relatos orais, por exemplo, de que por volta de 1989, cães saíram de lá com ossos na boca, logo depois da queda de parte do muro.

“É assim que lidam com a memória dos pobres. Será que fariam o mesmo com o cemitério da elite, o São João Batista? Será que permitiriam o mesmo? É desrespeitosa a maneira como lidam com essas histórias. O cemitério morre duas vezes: morre a memória e morre da maneira que a vida propõe”.

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