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Em busca do Pôr-do-Sol: idosa com o filho paralítico luta por moradia em Chapada dos Guimarães

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Em busca do Pôr-do-Sol: idosa com o filho paralítico luta por moradia em Chapada dos Guimarães
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Sorridente e sem modéstia para apresentar seu “palácio” – um barraco improvisado com pedaços de madeira e telhas “furadas de bala” que aproveitou da última ocupação – dona Auta, 65 anos, ajeitou três cadeiras para acomodar as visitas e, ao se referir à sua nova moradia, disse: “Tem coisa mais bonitinha na face da terra?”.

Alegre em recepcionar a reportagem, ela não poupou o sono do filho, que dormia em barraca doada e que ocupa a maior parte do espaço em que cabem um fogão, uma mesa e pequenos armários.

Com certa dificuldade, mas muita agilidade, Auta sentou Sérgio, 42 anos, portador de uma paralisia cerebral, para acompanhar a entrevista. “Esse aqui é o meu gatinho, meu capanga”, disse aos risos.

Mãe e filho chegaram à comunidade Pôr-do-Sol, em Chapada dos Guimarães (60 km de Cuiabá) na quinta-feira (24), junto com outras 42 famílias de sem-teto, cerca de 180 pessoas. Segundo o Ministério Público Estadual de Mato Grosso (MP), elas estão sendo deslocadas para a última rua do loteamento popular pela Prefeitura e têm enfrentado a resistência de outros moradores, inclusive ameaças.

Foto: Eliene Londero

O loteamento que começou como empreendimento particular, por força de uma Ação Civil Pública retornou à posse do Município, segundo portaria do MP.

Mesmo tendo a Prefeitura aberto essa nova área para acomodar os novos moradores, isso não garante a tão buscada estabilidade, já que, para erguer uma estrutura da mais simples, eles têm contado apenas com a solidariedade de outros chapadenses.

A área de assentamento está sem rede de esgoto e os barracos, como o de dona Auta, estão sem energia e água. Com a ajuda de voluntários, moradores e da irmã aposentada, ela e o filho conseguiram se abrigar da chuva e do frio. “Muita gente que eu nem sei quem é para falar, está me ajudando. Eu não fiz nada sozinha, se eu falar isso é mentira”, diz a idosa.

Em visita ao local nos dias 25 e 29, o MP constatou a precariedade da estrutura do loteamento e informou, por meio da assessoria de imprensa, que a Promotoria de Justiça de Chapada dos Guimarães instaurou procedimento para acompanhar o caso e já requisitou informações ao município. Assim que as investigações forem concluídas, o MP adotará as providências cabíveis.

A promessa de um terreno finalmente seu renova as expectativas de dona Auta para, enfim, dar dignidade ao filho, que, lúcido de toda a situação, não aceita se distanciar da mãe. “Falei para ele que eu ia deixar ele lá na tia dele até as coisas se ajeitarem, mas ele quis ficar aqui comigo”, conta a mãe.

Ela afirma ainda que sua maior urgência é um banheiro e materiais para o piso: “não dá mais para ficar sem banheiro com ele aqui; preciso cimentar para arrumar logo as minhas coisas”.

Sérgio também precisa consultar um neurologista para ser medicado e dar sequência à fisioterapia para não perder de vez os movimentos. Na última ida ao gastroenterologista, descobriu em um refluxo a causa de suas perdas de fôlego. “Levei no ortopedista e o médico disse que meu filho pode ficar em uma cadeira de rodas. Em nome de Jesus Cristo, não vai ficar não, porque eu vou lutar até a última gota do meu sangue”.

(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

“No meu lugar, o que você faria?”

Natural de Barra do Garças, Auta sobrevive somente do Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social à Pessoa com Deficiência – BCD no valor de um salário mínimo, desde que precisou parar de trabalhar como empregada doméstica para se desdobrar nos cuidados da mãe, já falecida, e do caçula. Mãe solo, criou ainda outras duas filhas.

“Eu falo que a vida do meu filho é um milagre. Quando ele nasceu, o pai dele tinha ido a São Paulo tratar um cravo no pé. O médico chegou a falar para mim assim: ‘mãe, se a senhora não tirar o registro do menino, nós não vamos poder colocar a mão no seu filho’. Ele vivia 24 horas no hospital. No meu lugar, o que você faria?”, questionou ela.

Auta teve que registrar Sérgio sozinha e, quando o ex-companheiro retornou, não quis assumir a paternidade. “Nunca dependi dele, nem por uma balinha, de nenhum dos três pais. Trabalhei como uma condenada, mamãe me ajudando bem ou mal, até o último dia da vida dela. Hoje meus filhos são meus amigos e companheiros”.

Anos depois, Auta chegou a usar o dinheiro de um pagamento para ir até Paranatinga realizar o desejo do filho de conhecer o pai. “É bom quando a gente faz as coisas para saber como é. Como ele morreu, meu filho poderia me condenar e graças a Deus hoje eu tenho a consciência leve”, reflete.

Ela chegou a morar em Cuiabá, mas voltou para Barra do Garças depois que a mãe adoeceu.

“Eu levantava todo dia de madrugada e fazia comida para deixar para ela e Sérgio ficava na APAE. Quando eu chegava em casa, encontrava a comida lá, parada, e perguntava ‘mamãe, a senhora não comeu?’. Ela dizia que não via, estava cega, e eu tive que sair do serviço. Depois que a mamãe morreu, eu não trabalhei mais, porque não tive com quem deixar ele”.

(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ameaças e fuga

Junto com a morte da mãe, Auta teve que lidar com ameaças do genro após a separação da filha. “Alguma coisa aconteceu com aquele homem. Para mim, ele pensa que eu mandei minha filha separar. Ele ameaçava colocar fogo na minha casa e matar eu e meu filho queimados”.

Continuar na cidade se tornou insuportável. Sérgio chorava a todo momento, não comia e nem dormia. Com medo de deixá-lo sozinha, ela conta que não quis “morrer de graça”.

“Quando nós estávamos lá na delegacia com o corpo da mamãe estirado, ela virou para mim e falou assim: ‘dona, porque a senhora não vai embora?’. Mas eu pensava: ‘eu, sair da minha casa? Não é justo’. E até ali eu não me importei com a delegada. Até que um dia eu vi ele [ex-genro] num matinho. Ele tinha falado para o advogado que não ia mexer comigo, mas aquilo me deu um pânico tão grande que, no outro dia, larguei tudo. Eu, ficar por causa de móvel? Fui embora, fiquei com a minha irmã em Nova Chapada uns quatro meses. Mas morar junto não presta, ainda mais tendo o filho. Entrei para o grilo”.

(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Vida no grilo

Na ocupação da área verde, Auta viveu durante quase um ano, junto as outras 35 famílias, protegidas pela coletividade.

“Quando eles falaram que iam passar o trator, nós descemos para uma área próxima. Disseram que iam passar outra vez e seu Marcos [presidente da ocupação] subiu em cima da torre e disse que ia se matar por causa de nós. Certa vez ele amarrou os pés dele e ficou dependurado de cabeça para baixo. Ficou até roxo, mas conseguiu água para nós. Ele pode ser o que for, doido, maluco, mas ele fez por nós, e isso ninguém faz”, relata.

Auta conta que, assim como seus vizinhos, ocupou a área sabendo que não ficaria ali para sempre. Todos foram cadastrados na Assistência Social do município; mesmo assim, as ameaças de despejo eram constantes.

“Uma vez o dono do terreno chegou, parou o carro dele e a polícia atrás. Eram quatro policiais. Um deles chegou e perguntou ‘dona, foi a senhora quem cortou a cerca?’. Eu disse ‘não, foi a prefeitura’. Ele me entregou o documento e disse ‘esse terreno é meu’. Aí o filho da vizinha veio atrás de mim e falou ‘pega aquele documento que a prefeitura deu para senhora’. Depois eu consegui chegar aqui, eu estou nas mãos do Senhor”.

Desde que saiu de Barra do Garças e conquistou sua moradia em Chapada dos Guimarães, Auta convive com a saudade das filhas, que, por sua vez, lamentam a impotência em relação a situação da mãe e irmão. “Meu outro genro falava assim: ‘dona Auta, quando a senhora precisar de mim lá, pode ligar que eu venho’. Mas infelizmente ele morreu. Se tivesse vivo, eu creio que me dava a mão”.

Seguindo o destino da mãe, sozinhas e com salário de domésticas, as filhas travam suas próprias batalhas para pagar dívidas, cuidar dos netos e bancar as despesas do filho estudante.

“Minha filha sempre me fala: ‘mamãe, eu não tenho condição de ajudar a senhora, se eu pudesse, eu mandava um dinheiro’. Eu respondo para ela: ‘minha filha, eu vou lutar. Não sei o dia de amanhã, mas, se eu faltar, pelo menos um lote eu vou deixar para ela cuidar do irmão”.

Regularização

A Prefeitura Municipal de Chapada dos Guimarães se pronunciou em nota, em respeito aos questionamentos que partiram de cidadãos da cidade e da imprensa. Confira a nota na íntegra:

A Prefeitura esclarece que todas as matrículas do loteamento denominado “Pôr do Sol” foram canceladas e área retornou ao domínio do Município de Chapada dos Guimarães por força de uma sentença judicial proferida na Ação Civil Pública, código nº 3099, movida pelo Ministério Público Estadual contra Luiz Carlos Wagner, Gislaine Dias Florentino Ferreira e outros que tramitou pela 1ª Vara Cível da Comarca Chapada dos Guimarães/MT.

A Prefeitura Municipal de Chapada dos Guimarães/MT está promovendo a regularização fundiária dos lotes edificados do Loteamento “Pôr do Sol” conforme a Lei Federal nº 13465/2017 e Lei Municipal nº 1776/2018.

Em relação aos lotes não edificados, a Lei Municipal nº 1776/2018 garante a preferência para sua ocupação por famílias com renda igual ou inferior a 01 (um) salário mínimo que venham a ser retiradas de áreas de risco, proteção ambiental ou outras áreas públicas.

Assim, a Prefeitura Municipal promoveu a remoção de algumas famílias que estão ocupando irregularmente a área verde do loteamento Vale da Chapada para os lotes não edificados no Loteamento “Pôr do Sol” de propriedade do município, por força do mandado de reintegração de posse expedido pelo juízo da 2ª Vara Cível de Chapada dos Guimarães/MT, nos autos do processo nº 1000895-59.2018.8.11.0024.

Diante disso, a Gestão Municipal vem cumprindo o compromisso assumido de garantir moradia a pessoas carentes em detrimento das especulações imobiliária que vem sendo realizadas por particulares em área pública.

Interessados em ajudar as famílias do assentamento podem entrar em contato pelo (65) 3301-2737.

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