Hoje, eles vão e não vêm. Mas antigamente nem iam…

O chefe dos Correios chamou o “dotô coroné” prefeito para um particular. Os antigos coronéis da República Velha poderiam ser chamados de tudo, menos de burros. E a história se passa numa das quebradas do mundaréu do Brasil naqueles anos.

Em tom respeitoso, mas firme, porque amparado por autoridade maior, disse o responsável pela agência: “Chegou um telegrama urgente. O governo federal pede para abrir um procedimento administrativo”.

“Pra mode de quê, o que o governo quer desta vez?”, perguntou inconformado e ríspido o doutor sem nenhum curso superior, coronel de patente outorgada por ser chefe de valentões de braço armado e ter sido eleito prefeito por voto de cabresto por vezes sem conta.

“O governo quer saber por que o coletor de impostos não coleta nada. Ainda mais agora quando está faltando verba para tudo”.

“Ele coleta, sim. Eu mesmo estou com os impostos em dia”, espantou-se o maioral, já desconfiado de que havia caroço naquele angu.

“Eu sei de muitos outros que estão pagando, mas o coletor não envia ao governo os impostos que arrecada”, replicou com firmeza o diligente funcionário dos Correios.

“Ah, ié”, disse o poderoso chefão. “Vamos lá no cartório que eu vou mandar lavrar a certidão de óbito deste incompetente”.

A Coletoria, que hoje seria a sede da Receita Federal na localidade, ficava num prédio cinza e estava fechada. O chefão bateu forte com a aldrava, a argola fez um barulho danado, os vizinhos estranharam que alguém precisasse ser atendido pelo coletor àquela hora da noite.

No prédio vizinho, apareceu à porta uma donzela no frescor dos vinte anos, de camisola e com os cabelos desarrumados. O chefão deu ordem com cortesia: “Não é nada com a senhorita, moça; volte para dentro de casa e continue a fazer o que estava fazendo; se avexe, não, minha filha, todo mundo sabe que a minha filha não é mais mulher-moça e recebe homem que todo mundo conhece”.

Ela obedeceu e o coletor irrompeu à outra porta, já meio desconfiado de que boa coisa não lhe ia acontecer porque o coronel não falava muito baixo, não.

Instantes depois estavam os três no Cartório, diante do oficial, já avisado de antemão por recado providencial de que havia trabalho extra. O chefão indicou as duas duas cadeiras ao chefe dos correios e ao coletor e disse: “Eu fico de pé”.

Ato contínuo, ordenou ao escrivão: “Lavre a certidão de óbito deste aqui”, ordenou, apontando para o indigitado coletor, do contrário vocês estarão todos enrascados e eu também.

O coletor tomou a cor pálida dos pré-defuntos, mas foi consolado pela pesada mão no ombro: “Fique tranquilo, é para seu bem e para o bem de sua família”.

O homem começou a chorar. Ainda com uma das mãos nas costas do outro, o chefão disse quase cochichando: “Não vou te matar, você não vale a bala no quengo nem a faca que te sangre”.

O coletor, mais apavorado ainda, choramingou: “Sempre coletei como o senhor mandou”.

O chefão irritou-se: “Mas era para coletar também para o governo, animal burro! Um pouco, pelo menos, viu? Nada, não. Nada, o governo ia notar, como já notou.

O escrivão não parava de escrever e por fim disse: “Está lavrado o óbito, como o senhor determinou”. O coronel-chefe dos valentões da localidade, prefeito e doutor ordenou ao chefe dos Correios: “Junte esta certidão de óbito e informe a quem mandou abrir o procedimento investigatório que o coletor era ladrão, morreu sem deixar nenhum bem, nenhum herdeiro, de modo que a roubalheira não pode mais ser cobrada. E a gente espera que o processo seja arquivado”.

De fato foi, mas o novo nomeado recebeu orientação de mandar para o governo tudo o que arrecadasse.

Tempos depois, morreu o chefe do Cartório. Desempregado e oficialmente morto, o antigo coletor pediu o emprego. O Coronel era compreensivo e atendeu ao pedido, não sem antes recomendar: “Mas tenha o cuidado de modificar o seu nome acrescentando um sobrenome que não seja de parente seu”.

E assim foi feito. E, passado mais um tempo, morreu o poderoso coronel, prefeito e doutor. Passaram-se outros tantos anos e o chefe do Cartório, já velho, divertia-se mostrando a página do livro onde estava assentado o seu óbito, muitas e muitas páginas antes do registro da morte do dotô coroné prefeito.

Até que um dia chegou a morte, “a indesejada das gentes”,  para o ex-larápio também. Não foi lavrada outra certidão de óbito.

Ele não podia morrer duas vezes. E, se alguém mexesse naquela inconveniência, muitos órfãos perderiam a pensão. (xx)

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